segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Casamentos de sangue




Por ciúmes, mata-se. Por razões de coração, baleiam-se os valores morais e deixam-se filhos sem colo paterno. O que o casamento une, o crime pode separar. Duas histórias de homicídios passionais que obrigaram avós a assumirem o papel tardio de pais dos netos



Texto de Liliana Garcia

Fotografias de Humberto Almendra


Duplo homicídio. Quatro crianças a escurecerem os sonhos, a tiritarem, sob os cobertores. São suficientes, os cobertores, mas a noite tornou-se polar, sem que eles percebessem porquê. A palidez da lua, a orfandade à espreita.


Diz-se crime passional e não se percebe. Não se percebe nunca. Passional. Espanta-se, da lembrança, o «Pasión» do Rodrigo Leão. Procura-se o dicionário, que é objecto de arrumar ideias. Confirma-se que passional é relativo a paixão, susceptível de paixão.


E que é isso de paixão? Têm-se tantas dúvidas, quando se é adulto. Ser criança é ter as dúvidas todas e pensar que os outros, os adultos, as darão, infalíveis. E que bastará a firmeza na voz e um afago na cabeça para espantar as dúvidas, como se estas fossem corvos no trigal.


A paixão pode atear fogo entre duas almas e levar um corpo a arredondar a maternidade. A paixão pode parir quatro filhos. O amor os educará. Mas, a paixão também pode ser a arma de fogo que arranca o sangue das veias e o torna visível. Letalmente visível.


O dicionário dá pistas, não respostas firmes: «do Lat. passione, sofrimento. s. f., sentimento excessivo; amor ardente; afecto violento; entusiasmo; cólera; grande mágoa; vício dominador; alucinação; sofrimento intenso e prolongado; parcialidade; o martírio de Cristo ou dos Santos martirizados; parte do Evangelho em que se narra a Paixão de Cristo; colorido, expressão viva, em literatura».


Retém-se a ideia de afecto violento. É frequente a união destas duas palavras. As nódoas negras, a aliança reluzente deste enlace. Em nome da paixão, é-se imoral. É-se criminoso. Depois, pode ser que venha o arrependimento.


Ele entrou na madrugada, de arma em punho. E foi à queima-roupa. Primeiro rebentou a fechadura da porta de casa com uma caçadeira de canos cerrados. Seguiram-se mais três tiros. Atingiu a cabeça da ex-mulher, o braço e o peito do actual companheiro dela. Duas mortes imediatas. Maria de Fátima Pereira, de 31 anos, natural de Moreira, concelho de Nelas; e José Alves Martins, de 48 anos, divorciado, natural de Chaves.


Quatro menores, órfãos de mãe. O mais velho com dez anos, duas gémeas, de seis anos, e o mais pequeno de ano e meio. Quatro seres sem colo quente. Pegou nos quatro filhos e levou-os a casa dos sogros. Deixou-lhes 50 euros e quatro vidas por criar. Depois entregou-se à GNR.


José Luís Pais Ferreira, de 37 anos, estava divorciado, há três semanas, de Maria de Fátima. Mesmo tendo um envolvimento com uma irlandesa, José não suportou a ideia de a ex-mulher não ser propriedade dele ad eternum. Não aguentou saber que, debaixo do tecto da vivenda que tinham construído há nove anos, Fátima começava a encontrar afecto no abraço de outro homem. O desnorteio do ciúme. A condenação à pena máxima: 25 anos de prisão.


«Maria de Fátima foi a maior alegria que Deus me deu». Com dois filhos rapazes, uma menina era a cereja no cume da família Pereira. E foi, durante 31 anos. Até ao dia 30 de Outubro de 2008. «Ele comeu-ma, mas deixou um pedaço dela, que são os meus netos», solta Rosa Pereira, mãe de Fátima. «Sem os meus netos, já não vivia».


O luto não larga Rosa. Calças pretas, camisa preta, bata preta, chapéu preto. Por detrás dos óculos, o olhar triste como a noite. Como aquela noite. Estremunhados pelo sono, Rosa e Joaquim não perceberam, de imediato, a dimensão da mudança que se impunha na vida deles. Estavam ainda na madrugada da reviravolta. «Ele entregou os meninos, deu 50 euros e disse que se ia entregar à polícia». Nesse momento, o ânimo materno tropeçou no nó da garganta: «O meu coração estoirou». Os meninos iam «geladinhos, a tremer». Assim, que conseguiu acalmar as crianças, Rosa ligou a um irmão, para ouvir o que não queria. «Ó mana, não há nada a fazer. A Fátima acabou».


Dentro de Rosa formou-se uma barragem. As comportas abriram no início da manhã. «Estive até às seis da manhã sem chorar. Depois não aguentei mais e chorei, chorei». No pensamento de Rosa adivinha-se a frase que a filha lhe atirou, para justificar o novo amor que pôs em casa: «Ó mãe, deixe-me ser feliz, que nunca fui feliz!».


No diário, que a Polícia Judiciária encontrou, Maria de Fátima ousava escrever o que o medo a inibia de verbalizar. Os maus-tratos físicos e psicológicos acumularam-se ao longo de 15 anos de casamento. Fátima e José Luís conheceram-se num bailarico de aldeia. Aos 16 anos, a adolescente sentiu ter encontrado um amor para toda a vida. Fátima, como todos os enamorados, acreditava no “e viveram felizes para sempre”. A mãe gostava de ver a filha com outro género de rapaz, mas não se opôs ao desejo filial. «Como o meu pai também não queria que eu casasse com o meu marido, sei o que é lutar para ficar com o homem que se ama».


Depois de casados, José e Maria de Fátima procuraram sustento em Inglaterra. Logo aí, começaram os maus-tratos. «As patroas perguntavam-lhe quem lhe tinha feito as nódoas negras e ela dizia que tinham sido assaltantes». Depois de uma passagem pela Alemanha, país onde Fátima engravidou pela primeira vez, deu-se o regresso a Portugal. Os sogros arranjaram trabalho para o genro, nas proximidades de Moreira, a aldeia do concelho de Nelas onde viviam. José era operador de máquinas de terraplanagem. E não permitiu que Fátima fosse alguém no mercado de trabalho. A mulher ficava em casa, em redor dos filhos.


José entendia que a sogra dava maus conselhos à esposa. Uma altura, apareceu em casa dos sogros sem a mulher. Rosa perguntou-lhe por Fátima. Recebeu uma resposta retorcida. «Parecia o diabo». A sogra disse-lhe que se ele e a filha não se entendiam, mais valia ir cada um para o seu canto. Desatou a pontapear Rosa. «Deixou-me toda rota».


Os pontapés de José foram muito pouco, comparado com a dor de perder uma filha, com a angústia de ganhar quatro novos filhos. Os 53 anos de Rosa e os 56 de Joaquim fazem-nos pensar no futuro dos netos. O que Rosa mais quer é conseguir «criá-los e casá-los com uma companhia que os estime». E apurar dinheiro para poder pagar a carta de condução aos quatro e já agora «fazer o enxoval para as pequeninas».


Rosa e Joaquim vêem-se a fazer aos netos o que não fizeram aos três filhos, que os tempos eram outros, mais difíceis e miseráveis. Mas estes tempos também não se afiguram risonhos. Rosa desempregou-se para cuidar das crianças; Joaquim, pedreiro, está a receber subsídio de desemprego. O casal que, para criar os netos, recebe 250 euros da Segurança Social, só pede saúde para poder dar chão e asas às crianças. «Nem que queiramos chorar, não podemos porque eles querem brincadeira». Querem folia, agora. Porque nos primeiros três, quatro meses, após a morte de Fátima, os avós andavam sempre com os netos nas urgências. Os pequenos passavam o tempo «com febre, a vomitar, por causa da ansiedade». Os quatro têm acompanhamento psicológico.


Há noites em que as gémeas pedem à avó para rezarem o terço, «pela alma da mãe, que está no céu, e para que o pai cumpra pelo que fez». Há noites em que o neto mais pequenino se vira para Rosa e diz que a estrela que desponta é a mamã. São noites em que quatro crianças sabem que podem contar com as mãos do amor para aconchegarem os cobertores.


Há colos de avós que viraram regaços maternos, à força da bala. O poder paternal entregue a avós que, de um dia para o outro, se transformam em mães a tempo inteiro. Aconteceu isso a Rosa, tal como aconteceu a Lucília.


Os quatro anos de E. chegaram a casa muito chorosos. Um menino tinha-lhe atirado crueldade dizendo que o pai dela era mau. Tudo o que a pequena E. queria era esquecer. Tudo o que a avó materna queria era voltar atrás e saber o que soube no dia 14 de Julho de 2007. «Não tenho muito, mas dava quase tudo do que tenho para a minha menina não ter isso dentro dela». Dentro de E. há imagens de violência extrema. «Vozinha, o papá deu muito tautau à mamã, pegou-lhe pelos cabelos e bateu-lhe com a cabeça contra a parede. E depois o papá atirou a mamã pela varanda».


As rugas vincadas de Lucília Carvalhas contam que a sua menina tem «uma mágoa muito grande»: «Não pode ouvir a palavra pai, que é como um tiro no coração». No Dia do Pai, na escola, E. teve uma crise. Pegava no papel para desenhar e as mãos só inclinavam para lápis de cor escura. A psicóloga que acompanha a menina aconselhou os avós a arranjarem-lhe um cão, como animal de companhia. Eles assim fizeram. Mas, os pesadelos não abandonaram as noites da criança que, aos dois anos e meio, perdeu o calor materno.


Paulo Silva, pai de E., está a cumprir 20 anos e quatro meses de prisão, pelo homicídio da mulher. O funeral de Carla, de 30 anos, foi no dia em que o casal completava oito anos de casamento.


A mãe da vítima, Lucília, sublinha que Paulo «não matou por ciúmes, nem por amor, mas para trocar de mulher. E ele pensava que matando-a ficava com a casa paga». O único ciúme que Paulo sentiria era do facto de Carla ter um ordenado mais elevado que o dele. É nisso que acredita a sogra.


Paulo e Carla trabalhavam na PSA Peugeot Citröen de Mangualde. Ela era funcionária dos escritórios da empresa; ele operário. Durante a investigação policial, foi encontrada, na secretária do local de trabalho de Carla, uma carta onde esta pedia para não chorarem por ela, caso desaparecesse. «Dizia que preferia morrer a ver alguém da família morrer», conta a mãe.


Até à data do crime, Lucília nunca encontrava grandes nódoas na camisa do genro: «Ele portou-se sempre às mil maravilhas connosco, nunca teve uma má palavra, nunca me fez queixas da Carla». «Só dizia que era exagerada na limpeza e no cuidar da filha». Nos últimos tempos, Lucília começou a estranhar o emagrecimento da filha e «a tristeza na carinha dela».


O casal já tinha tido problemas, no início do casamento, na altura em que Carla descobriu, no telemóvel do marido, mensagens de uma suposta amante. Quando confrontou o marido com a descoberta, ele reagiu mal. «Disse-lhe para ela ir para casa dos pais, para dar um tempo». Carla decidiu voltar para o marido depois de pedir conselho à mãe. Lucília só lhe disse: «Teu coração é teu mestre. Vai, mas enterra o que aconteceu, para teres paz».


No dia 12 de Julho de 2007, por volta das 17h30, Carla passou por casa da mãe para ir buscar a filhota. Dois dias depois, o corpo de Carla é encontrado, por emigrantes de Leste, na lagoa de uma pedreira da Cunha Baixa. Paulo deu alerta do desaparecimento da mulher no dia 13. E dirigiu-se, várias vezes, a casa dos sogros a perguntar-lhes se sabiam alguma coisa da filha. «Eu aqui deitada, no sofá da cozinha, e ele vinha cá constantemente perguntar se ela ainda não tinha ligado a dar notícias. Até ligou aos colegas de trabalho a perguntar pela mulher!», recorda Lucília.

O poder de dissimulação de Paulo fê-lo dizer que os dois tinham discutido e que ela tinha ido para a cama, ficando ele com a filha, na sala, a ver desenhos animados. Como teria visto televisão noite dentro, para não acordar Carla, Paulo acabaria por dormir com a filha. De manhã, nem mulher, nem Peugeot 206. A sogra estranhou a história, que a constância da filha não era condizente com uma fuga de casa, sem filha e sem explicações. Paulo chegou a dizer que a mulher teria saído de casa, pelas mãos de um inédito sonambulismo.


Quando a Judiciária encontrou o carro e o corpo de Carla, a voz do povo aumentou o volume e propagou o envolvimento de Paulo com a funcionária do café onde ele passava a vida. A polícia não fez ouvidos moucos às suspeitas e às provas que encontrou. Paulo ficou em prisão preventiva. E mesmo, no estabelecimento prisional, enviou cartas à alegada amante. Num dos manuscritos referia que tinha morto a mulher por ciúmes e que daí a «seis ou sete anos» estaria livre e poderiam então ser felizes.


Só com a detenção de Paulo é que Lucília começou a entender a reacção da neta, nos dias após o desaparecimento da mãe. Quando, o pai chegou a casa dos sogros para comunicar o sumiço da mulher, E. foi a correr para o colo da avó e não disse «nadinha» durante três dias. Nos dias que se seguiram, «com os nervos, a menina chegava a vomitar sangue».


Lucília não sabe o que, de facto, os olhinhos da neta terão presenciado no dia da morte da mãe. Provado ficou que o Paulo levou Carla até à pedreira e ali, na cegueira da noite, disparou quatro tiros. A mulher ainda terá tentado fugir da morte. Como os tiros não bastaram, seguiram-se golpes na cabeça, com um objecto contundente. Por fim, o empurrão, para o interior das águas da lagoa. Paulo regressou a casa, lavou-se, escondeu a t-shirt ensanguentada debaixo de uma telha e agiu com uma anormal serenidade. O tribunal destacou a «brutal violência» do crime, tal como a existência de uma «vontade criminosa muito intensa».


Com 66 anos, o que Lucília mais quer é dedicar o resto da vida a criar a neta. Um trajecto, sem mapa, feito de lágrimas engolidas. E. tem dias em que só queria ser personagem de um conto de fadas. Mas percebe que, tal como Hansel, ficou sem migalhas a marcarem o trajecto maternal. «Vó, ensina-me o caminho para o céu, quero ir ver a mamã».



terça-feira, 10 de novembro de 2009

Primos direitos






Pastéis de Tentúgal e Pastéis de Vouzela são parecidos na aparência, distintos no recheio. Quando se come apenas com os olhos, é frequente confundir os dois. Quem conhece o sabor e os bastidores da confecção nunca mais esquece as diferenças. Em Tentúgal, a tradição ainda é o que era. Com massa esticada sobre estrados com lençóis e pinceladas de pena de galinha


Texto de Liliana Garcia
Fotografias de Humberto Almendra

Uma roda de madeira a quebrar o recolhimento intramuros. A roda como símbolo pragmático da ligação do Convento de Nossa Senhora do Carmo com o exterior. Era naquele cilindro oco que as gentes da região de Tentúgal depositavam donativos ou recém-nascidos cujo destino seria o desamparo. As irmãs religiosas a estenderem os braços num movimento perpétuo. Através daquela roda giratória saíam mezinhas da botica e pastéis folhados da cozinha, para curar maleitas e alimentar convalescentes. Foi através dessa mesma roda que as freiras, da Ordem das Carmelitas Calçadas, colocaram Tentúgal no mapa da gula.

Uma voz aponta para a roda, com a solenidade de quem tem gosto em narrar a História. «Por ali tudo entrava e tudo saía», afiança José Craveiro, contador de histórias e um dos dinamizadores da Confraria da Doçaria Conventual de Tentúgal. Mais do que de vocação, «a História da Igreja é de humanidade». José Craveiro, conhecedor da história daquela vila do Baixo Mondego, sublinha que «90 por cento das irmãs» seguiam a vida religiosa não por chamamento divino, mas porque um convento representava uma «casa de refúgio», onde comida e dormida eram uma certeza.

O Convento de Nossa Senhora do Carmo, criado no século XVI pela mão de D. Francisco de Melo, Conde de Tentúgal, nasceu como amparo para órfãs e filhas de fidalgos que não tinham possibilidades de as casarem. «Muitas vinham para aqui já grávidas porque senão morriam de fome», aviva Craveiro.

A namorada do poeta António Nobre foi uma das jovens colocadas pela família no convento de Tentúgal. O autor da obra “Só” (1892) empenhou-se em quebrar as barreiras físicas que o separavam da amada. Mas o máximo que conseguia, nas idas a Tentúgal, foi adoçar a boca e ganhar inspiração poética: «Tentúgal, toda a rir de casas brancas! / A boa aldeia! Venho cá todos os meses/ e contrariado vou de todas essas vezes. / Venho ao convento visitar a linda freira, / Nunca lhe falo: talvez hoje a vez primeira… / Vou lá comprar um pastelinho, que eu bem sei/ que ele trará dentro um bilhete, isto sonhei: / Assim o pastelinho, ó ventura sonhada! / Tem de recheio o coração da minha amada. / Abro o envelope ideal. Vamos a ver… - Traz? – Não! / Regresso a Coimbra só com meu coração».

José Craveiro conta que da boca da última prioresa do convento saiu um vaticínio: «Ai de Tentúgal e sete léguas em redor quando esta casa fechar a porta!». O encerramento ocorreu em 1898. Com a extinção das ordens religiosas, as freiras ficaram entregues à miséria. Era a vez da comunidade cuidar das irmãs. A mão do povo começou a dar com uma mão, puxando o receituário conventual com a outra.

A proximidade com as últimas criadas do convento fez com que Maria da Conceição Faria se inteirasse do guloso segredo. Em 1890, os pastéis folhados começaram a ser feitos e vendidos na hospedaria da família Faria. A receita passou de mãe para filha e, a partir do início dos anos 20 do século XX, Branca Faria Delgado impulsionou a divulgação dos Pastéis de Tentúgal. Professores e alunos da Universidade de Coimbra começaram a deslocar-se até à vila para que as papilas gustativas recebessem doces lições.

Na hora de meter as mãos na massa, as pessoas sabedoras da receita dos pastéis cobriam-se de sigilos. As janelas eram tapadas com mantas porque o segredo era a alma do negócio. Mas não haja ilusões. Conhecer a receita dos pastéis de Tentúgal significa ter uma mão cheia de nada. Ou, como diria José Craveiro, «a receita dos pastéis será a única do mundo que não se pode escrever». A massa folhada é composta apenas por água e farinha. O recheio resume-se a uma mistura de gema de ovo, açúcar, água e canela. Agora tentem fazer em casa. Nós asseguramos que o resultado será desastroso. Não existe receita que ensine a técnica apurada em gestos femininos.

Olga Cavaleiro, responsável pela Confraria da Doçaria Conventual de Tentúgal, abre-nos as portas dos bastidores da sua pastelaria recheada de doces tentações. Desde que criou a confraria, há dois anos, esta empresária, filha de uma pasteleira, empenha-se em divulgar os pastéis e toda a cultura ligada ao fabrico. Para isso, entre outras iniciativas, foram criadas as rotas da doçaria conventual e do património. O objectivo é criar um «turismo de proximidade». «As pessoas que entram aqui não são só visitantes, lido com elas de forma a serem potenciais defensores do património», sublinha Olga. E isso significa dar conhecimentos aos consumidores para que percebam quando estão perante um pastel de má qualidade: «Se precisar de exercer pressão no maxilar é porque o pastel não foi bem feito; se este se desfizer na boca é porque estava bem feito».

Colocamos as toucas na cabeça e seguimos Olga até à casa da massa. Aí, em extensos estrados cobertos por lençóis brancos, uma pasteleira, vestida de branco e sem sapatos, vai aos poucos esticando um círculo de massa. Estica, deixa repousar, estica, deixa repousar. «Só para fazer a massa, uma mulher tem de aprender cerca de um ano, é preciso muito treino», explica Olga. Há que praticar muito, até conseguir fazer massa folhada com uma espessura de 0,05 milímetros. Depois de esticada, aguarda 10, 15 minutos, até ser retirada aos pedaços com uma faca. O controlo da humidade é uma constante.

No espaço da cozinha, alinham-se vários recipientes com doce de ovos. Numa banca, uma pasteleira estende uma folha de massa folhada, coloca pedaços da mesma massa no centro e junta-lhe o doce de ovos. O pastel é enrolado e as pontas dobradas. Com o auxílio de uma pena de galinha, soltam-se uns pingos de manteiga. «A pena de galinha é importante porque permite que a gordura que escorre não seja exagerada». Na pastelaria de Olga Cavaleiro, por dia, chegam a ser gastos 40 quilos de farinha, 72 quilos de açúcar e mais de mil ovos. Em apenas um dia, da cozinha saem entre dois mil a quatro mil pastéis.

Para além do pastel em formato de palito, também se faz a meia-lua, que era consideradas a excelência da doçaria de Tentúgal. Enquanto o pastel representava o alimento dos pobres; a meia-lua, com doce de ovos com amêndoa, era oferecida em ocasiões especiais.

O processo de qualificação dos Pastéis de Tentúgal, entregue no Ministério da Agricultura, no ano passado, implicou a criação de um caderno de especificações onde se normaliza a confecção e embalagem dos doces. Dos nove pasteleiros a fazer pastéis, seis deles decidiram esquecer as rivalidades e integraram o processo de qualificação. «As coisas mudaram na apresentação final do pastel, aumentou o brio e orgulho no pastel», sublinha Olga Cavaleiro.

Nós quisemos saber se existe uma doce rivalidade entre os Pastéis de Tentúgal e os Pastéis de Vouzela, tantas vezes confundidos. Quando se fala no doce de Vouzela e das parecenças físicas com o de Tentúgal, Olga Cavaleiro aclara que de gémeos pouco têm. Quanto muito serão primos em primeiro grau. Aos olhos mais desatentos o aspecto dos dois doces conventuais parece semelhante. Ambos de massa folhada, enrolada. Mas de recheio e modos de produção distintos.

Olga Cavaleiro afirma que, segundo os relatos históricos, «acredita-se que as freiras do convento de Tentúgal, ao regressarem a casa da família, terão levado com elas o segredo». Algumas delas seriam da zona de Vouzela, em Viseu, e teriam iniciado aí a produção de pastéis. Tentámos conversar com a doceira que há mais anos faz Pastéis de Vouzela, com o intuito de conhecer a história do bolo. Mas a única coisa que conseguimos ouvir foi: «Estou farta de falar com jornalistas! Por isso, não falo mais de pastéis». Procuramos quem queira partilhar o pouco que saiba sobre a história do pastel. Os pasteleiros Vítor e Miguel Correia referem, sem certezas, que a receita terá vindo do Mosteiro de Santa Clara do Porto, com o regresso de religiosas às origens, na zona de Lafões.

A escala do negócio dos pastéis de Tentúgal e de Vouzela é incomparável. Enquanto no Baixo Mondego, os pastéis dão emprego directo a 150 pessoas, em Vouzela, existem apenas três produtores. Outra das grandes diferenças entre os dois pastéis é que, enquanto em Tentúgal, a confecção está, em exclusivo, entregue às mãos femininas, em Vouzela, são os homens a dominar o fabrico.

Após a morte do pai, os irmãos Vítor Correia, de 38 anos, e Miguel Correia, de 28, decidiram não pôr ponto final ao negócio familiar. Se o pai fazia Pastéis de Vouzela, eles haviam de dar continuidade à guloseima. Tornaram-se sócios e tiraram o pastel do domínio caseiro. Na zona industrial da vila, dedicam-se, em exclusivo, à confecção dos pastéis conventuais. Nos meses de Inverno, costumam produzir, por dia, entre 30 e 40 dúzias de doces. No Verão, os valores sobem às 80 ou 90 dúzias.

Vítor, habituado a ajudar o pai desde os 16 anos, confessa que «a primeira vez foi complicado». «Ver é fácil, mas até ganhar acerto e ritmo só ao fim de meses de trabalho». Se aprender a esticar a massa demora meses, saber enrolar um pastel é tarefa para levar algumas semanas. Em Vouzela, a massa folhada é feita em moldes modernos, com a massa a ser esticada em telas distribuídas em prateleiras de metal. O recheio é mais líquido que o do pastel de Tentúgal e em vez de pena de galinha é utilizado um pincel de silicone.

«O pastel leva muitas voltas, não é só chegar aqui e esticar. São muitas horas de trabalho. Isto é um serviço de que se tem de gostar. Eu gosto», desprende Vítor. Gosta do trabalho e da degustação. Ou não fosse um guloso assumido. Quem o critica?

(publicado na revista do i, na edição Nós Gulosos)

O guardião





Pintura de Grão Vasco à chuva, pedras tumulares a servirem de salgadeiras ou bebedouros de animais, tubos de um órgão adaptados a buzina de bicicleta. António Caetano descoseu a alfaiataria da sua vida e regressou à terra natal para estancar a destruição de um Monumento Nacional. Ao longo de 31 anos, não tem deixado que o Mosteiro de S. João de Tarouca desfaleça. Venceu a luta contra a ignorância, mas não derrotou a força do desinteresse pelo património. Se este homem não trabalhasse de forma voluntária, a igreja cisterciense estaria de portas trancadas



Texto de Liliana Garcia

Fotografias de Humberto Almendra


Há homens que revelam bravura na luta épica contra a ignorância. Em Tarouca, um homem vestiu o papel de guardião de um Monumento Nacional entregue ao Deus dará. Em 1978, António Caetano virou costas à conceituada alfaiataria Rosa & Teixeira, em Lisboa, e regressou às origens para pontear os males de que padecia o Mosteiro de S. João de Tarouca, o primeiro da Ordem de Cister em Portugal. A determinação em salvaguardar o património, levou a que o alfaiate, a título voluntário, debruasse a vida com inimigos. «Só tinha a meu favor o clero e o turismo». A mentalidade de uma população mergulhada no pragmatismo da lavoura. As mãos do povo a delapidarem o espólio, sem acto de contrição. Deus a benzer-se perante o trato dado às peças de arte.


«Fui ameaçado de morte». A intimação surgiu pela voz de um antigo presidente da junta de S. João de Tarouca, já falecido. Numa noite em que a embriaguez elevou o tom da ameaça, o autarca, de arma na mão, disse a Caetano: «Ou largas isto, ou tens os dias contados». O alfaiate contou até três e calou-se. Não fosse acirrar a ira do outro. Caetano alertou o Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) para o facto da casa do edil estar a infringir a lei, uma vez que a construção está a menos de 50 metros dos muros dos dormitórios conventuais. A câmara municipal de Tarouca tinha aprovado a obra. O tempo veio dar razão a António Caetano que, há dois anos, viu o Estado comprar a casa aos proprietários, com a intenção de demoli-la.


Mas a construção demasiada rente ao que resta do mosteiro do século XII, na encosta de S. Leomil, foi o menor dos problemas. Há 31 anos, na Igreja de S. João de Tarouca chovia como na rua. Mudar as telhas em pleno Inverno não lembraria nem ao diabo. Mas lembrou a alguém. A população chegava a participar na eucaristia, de guarda-chuva aberto. Sem dó nem piedade, a chuva fustigou as obras de arte, incluindo pinturas do mestre da pintura quinhentista Grão Vasco e do seu seguidor Gaspar Vaz. «O quadro S. Pedro, de Grão Vasco, saiu daqui, todo molhado, para ser restaurado» no Instituto de José de Figueiredo. Obra essa que, em 2002, integraria a exposição dedicada a Grão Vasco, em Salamanca - Capital Europeia da Cultura.


Junto ao altar, há duas molduras órfãs de imagem. As pinturas estavam tão maltratadas que houve quem as deitasse fora. Fruto da humidade, várias esculturas em terracota desfizeram-se; azulejos descolaram-se das paredes. Chocado, Caetano escreveu cartas ao Primeiro-Ministro, à Assembleia da República, à secretaria de Estado da Cultura. Ganhou a atenção do governo socialista de António Guterres.


«Para conseguir que o Estado olhasse por isto, foi preciso envergonhá-los». Nessa altura, António Caetano colocou paus a servirem de apoio ao órgão e um cartaz com uma frase de alerta: Perigo de cair. O órgão ibérico de tubos, situado na parte superior direita do Coro dos Monges e datado de 1766, não escapou aos braços esticados da cobiça. Segundo as contas do voluntário vigilante, foram subtraídos 68 tubos. «Chegavam a adaptar os tubos para as buzinas das bicicletas». No órgão, impõe-se a figura de um homem que marcava o compasso da música movimentando o braço e a boca. Mas não há som, porque tarda a vir a comparticipação financeira do Estado, para concluir as obras de restauro.


A extinção das ordens religiosas, em 1834, transformou o templo em igreja paroquial. Um manto barroco já tinha coberto a primitiva austeridade cisterciense. Os azulejos aninhados nas paredes começaram a criar ânsias nos dedinhos de um camponês que se lembrou de enriquecer a cozinha de casa com aqueles elementos decorativos do século XVII. Quando António Caetano começou a ser uma voz de reprovação, o agricultor quis livrar-se de chatices. Mandou picar as paredes da cozinha e atirou os azulejos para o rio Varosa.


«Com a ignorância, e por razões políticas, destruíram as coisas», lamenta o vigilante, de 72 anos. «No pós-25 de Abril, sanearam o pároco e diziam que, sem padre, mais valia destruir a igreja e torná-la num palheiro». Não transformaram o espaço religioso em depósito de palha, mas andou lá perto. O exterior da igreja chegou a ser utilizado como eira para malhar o centeio.


O túmulo gótico de D. Pedro Afonso, filho bastardo de D. Dinis, permanece na igreja. Mas, o túmulo da mulher de D. Pedro Afonso, que agora está no Museu de Lamego, chegou a ser usado como recipiente para fazer vinho. Outros túmulos aproximaram-se, à força, das rotinas daquelas gentes e foram usados como salgadeiras ou bebedouros para os animais. A capela de Santa Umbelina, que está ao abandono, foi usada como curral. Tal como a capela de Santo António foi adega de um – presume-se - abençoado vinho. «É impossível, no século XX, ainda ter existido gente com aquela mentalidade», indigna-se António Caetano. Mas no século XXI, só se observa uma mudança de forma. Agora não pulula a ignorância, mas pavoneia-se o desinteresse. Como diz o vigilante voluntário do mosteiro, o poder local não se entusiasma com a cultura porque «não dá votos».


Tarouca, no distrito de Viseu, é um concelho rural, com abundante emigração e escassa indústria. A empresa que mais andará na boca das pessoas é a Murganheira, produtora de espumante. Para além da riqueza do património histórico-cultural do concelho, não se vislumbra mais nenhuma razão de maior que tenha justificado, em 2004, a elevação de Tarouca a cidade. Seria de esperar que tivesse ocorrido também uma elevação da sensibilidade para as questões culturais.


Mas não. No sítio electrónico do IPPAR, é lembrado sim senhor que, «em 1996, a intervenção no Mosteiro de Tarouca, reconhecidamente um dos mais significativos monumentos da arquitectura cisterciense em Portugal, foi assumida como prioridade absoluta». E o que se faz com «uma prioridade absoluta»? Fazem-se obras de conservação e restauro, não se renovam os contratos dos três funcionários e tranca-se o monumento. Sem funcionários, a igreja passou a servir apenas para o serviço religioso. O que vale ao turismo é que Caetano tem autorização do pároco para abrir «a prioridade absoluta».


O guardião sabe que a diocese tem riqueza patrimonial, mas poucos euros nos bolsos. Por isso, percorre todos os dias 20 quilómetros de carro, para trabalhar de forma voluntária. O IPPAR conta com a generosidade dele, como se constata no site: «Quem estiver interessado em visitas guiadas deve tratar com António Vieira Caetano, no local ou através do número telefónico: +351 254 678 766».


Na solidão, abraçada pela gravação de cantos gregorianos, António Caetano continua a encantar-se com a grandiosidade das peças de arte e a alimentar a paixão pela História. No dia em que as pernas do vigilante não puderem acompanhar a vontade, acabam-se as portas abertas, as visitas guiadas e o deslumbre nos olhos dos visitantes. E o vale do rio Varosa vai ajoelhar-se de vergonha. «Sou útil ao país, embora os governantes não o reconheçam», solta. Alguém tem dúvidas?


(publicado na revista do i, na edição Nós Bravos)


quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Um sonho crescido



(publicado na revista Tabu, do semanário Sol)

Do lixo ao brinquedo



(publicado na revista Tabu, do semanário Sol)

Beleza instrumental



(publicado na revista Tabu, do semanário Sol)


P.S. Ignorar as legendas

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Ensaio sobre a cegueira









Um cego que durante 40 anos andou de bicicleta não é história de ficção, é vida de desenrascado. A resiliência de Joaquim Morais alimentou o olho para o negócio. Sem cão-guia e sem bengala, este homem, de 77 anos, aprendeu a ver para além dos olhos


Texto de Liliana Garcia

Fotografias de Humberto Almendra


A vida apurada por quatro sentidos. Em cada pedalada, o cheiro a pão quente namoriscava o odor a terra orvalhada. Entre as cinco e as dez da manhã, era vê-lo a andar de bicicleta, na distribuição, com um cabaz cheio de carcaças, broas, pães de segunda e de centeio. A brisa espantava as remelas de sono. O trajecto desenhado num mapa mental. Joaquim Morais, de 77 anos, nunca precisou dos olhos para saber distinguir as ruas, intuir as curvas e fazer os trocos. Uma precisa contagem do número de pedaladas fazia-o parar nos sítios certos. Durante 26 anos, foi esta a vida matinal de Joaquim, invisual desde a infância.


Um cego desenrascado e com olho para o negócio. Assim se pode resumir o perfil de Joaquim Morais. Este negociante nunca permitiu que a cegueira fosse um travão. Cedo percebeu que, “para ter futuro, tinha de encarar a vida como uma pessoa normal”. E para ele normal era ir de bicicleta vender pão entre Santar e Casal Sancho, duas aldeias do concelho de Nelas. A acompanhar o movimento das rodas, um cão. Ao ombro de Joaquim, o corvo Vicente. “O cão avisava-me quando a polícia estava por aqui, eu não podia andar de bicicleta!”, lembra. “O corvo poisava mesmo em cima de mim, imitava os cães e, quando lhe apetecia, roubava-me pão”. Os animais sempre gostaram de acompanhar Joaquim: “Não há animal nenhum que não goste de mim”.


As pombas não se intimidam perante quatro paredes e entram-lhe pelo armazém dentro. Aí, durante muitos anos, acumulou sacos e sacos de batatas, todos empilhados pelas mãos dele. Nesse depósito, a luz incide sobre um Zé Povinho intimidador: Queres fiado toma. Um calendário denuncia a simpatia pelo Sporting. Joaquim trepa para dentro do lagar de vinho e, de um canto escuro, resgata uma garrafa de tinto, de 1994. “É da idade da minha neta Susana”, contextualiza. Uma úlcera do duodeno alimenta-lhe a vontade de ser ele mesmo a fazer o vinho que consome. A prudência de quem quer saber o que lhe entra pela boca.


É no armazém, numa rua próxima de casa, que Joaquim guarda um velocípede de dois lugares. Velhinha, a bicicleta conta com 49 anos, nas mãos do negociante. Como foi comprada em segunda mão, terá, no total, 65 anos. Com esta bicicleta, Joaquim aventurou-se a ir, com um amigo, até à Figueira da Foz, onde passaram dois dias na praia. Uma viagem de 130 suados quilómetros. Com os anos, o comerciante perdeu o rasto à outra bicicleta, aquela que usava para distribuir pão e fruta. Usou-a durante 40 anos. O peso da idade minguou-lhe a agilidade e o sentido de orientação. “Naquela altura era fácil orientar-se porque não havia trânsito”.


Sem cão-guia e sem bengala, é através do ouvido que Joaquim Morais nota a presença de obstáculos. “Se bater o pé, faz eco”. “Se caísse uma folha a cem metros, eu ouvia-a”, exemplifica. Chega a observar as singularidades do feminino e do masculino: “As senhoras caminham como as perdizes, os homens como os coelhos. Ele é mais rápido a caminhar; as mulheres só caminham muito rápido quando andam com os nervos alterados”. Através do movimento, Joaquim consegue perceber se a pessoa é alta ou baixa. É no silencioso nocturno que este cego ‘vê’ melhor: “De noite, devido ao sossego, ao silêncio, o som reproduz-se em dobro”. A chuva torrencial e o vento atrapalham a leitura dos dias: “Rouba-nos um bocado a audição”.


Joaquim cresceu numa família de cinco irmãos. Os pais eram agricultores, de Casal Sancho. O pai bebia demais, a mãe tinha alegria a menos. Por sentir mais carinho em casa dos avós maternos, mudou-se para casa destes, em Santar. Aos cinco anos, cegou. “Um dia, acordei de manhã e não via. Pensei que não havia energia eléctrica e chamei a minha avó. Ela disse-me que já era de dia”. O estado de espírito escureceu: “Entrei em pânico, a chorar”.


“Nesse tempo, andava um inflamação nos olhos, chamada pisca. As pessoas até lavavam os olhos com água das rosas de japoneira, para ver se se curavam”, recorda. No entanto, o problema de Joaquim era outro. “Eu terei cegado devido a uma erva que comi, comecei a inchar e levaram-me para o hospital de Viseu, depois para o de Coimbra, e em seguida para o [Instituto de Oftalmologia] Gama Pinto. Daí, para o Hospital da Estrela”.


Joaquim adaptou-se com facilidade à nova condição. A resiliência e os colegas de infância protegiam-no. Jogava ao pião e andava com o arco e a gancheta, como a restante pequenada. Com os colegas, costumava também subir às árvores para apanhar fruta ou pinhas. Nunca caiu. E só não ia mais vezes porque a “avó chegava-lhe a roupa ao pêlo”.


Aos 19 anos, por intermédio da condessa de Santar e do governador civil de Viseu, foi para o Instituto São Manuel, no Porto. O intuito era o de aprender Braille e música. Desiludiu-se: “Meteram-me numa oficina a fazer vassouras”. Mau, mau, Maria, subiu-lhe a mostarda ao nariz, que não foi para isso que ele se mudou para o Porto. Ao fim de 12 dias, dirigiu-se ao director e perguntou-lhe quanto iria ganhar a fazer vassouras. O responsável disse-lhe que só iria ganhar algum dinheiro, ao fim de um ano, ano e meio. Joaquim não gostou da conversa. Podia lá ser?! “Havia quem estivesse a ganhar 60 ou 70 escudos” por fazer vassouras. Joaquim disse: “Ainda fujo!”. O director respondeu-lhe: “Quem foge também se agarra”. A verdade é que ninguém o agarrou.


Foi em Domingo de Ramos, três meses depois da chegada, que Joaquim fugiu do Instituto, saltando para uma tília que estava ao lado da janela do dormitório. Às costas, levava a mala com um fato e um harmónio, na mão o cabo de uma vassoura. Começou a cuspir para o chão, do alto da árvore, para perceber, através do som, a que altura estava. Saltou. Com o balanço ainda se magoou nas costas. Mas nada que travasse a vontade de regressar a Santar.


A estação de S. Bento ainda estava longe. Mas, já tinha desenhado, mentalmente, o trajecto até à estação. “Já tinha feito o percurso, acompanhado por uma rapariga que morava ali perto, para fazer os cálculos da distância”. Quando ouvi o barulho dos comboios percebeu que estava no bom caminho. “Eram quatro e tal da manhã, expliquei lá a um indivíduo que queria ir para a minha terra”. De bilhete comprado, aguardou a hora da partida. “Aguentei até às seis da manhã, a essa hora veio o ardina, comprei-lhe um jornal só para ele me dizer qual era a carruagem para a Beira Alta”. O comboio ia à pinha. Em cada paragem, Joaquim tratava de se fechar na casa de banho, não fosse a polícia aparecer. Na estação da Pampilhosa, agentes policiais ainda o procuraram, mas as artimanhas de Joaquim deram resultados. Ao chegar a Nelas, apanhou um autocarro para Santar. E não mais saiu de lá. Nessa altura, o avô já tinha morrido. “Para a minha avó, foi uma alegria eu voltar”.


Mal aprendeu o Braille, mas também não lhe fez falta. Retomou a vida de negociante. Começou por comprar sucata, papel, cortiça. Depois, alargou o comércio a produtos agrícolas. E conciliava isso com a venda de pão, ao serviço de uma padaria da zona. Nunca se deixou enganar nas contas. “Conhecia melhor o dinheiro que ele a mim”, graceja. “No tempo do escudo, arrumava as moedas ao chão e notava as diferenças entre elas através do barulho que faziam”.


Nas idas a Penalva do Castelo, a 25 quilómetros de Santar, conheceu uma vizinha de uma tia e, de repente, passou a ver com o coração. Em Encarnação apreciou a meiguice. Antes já tinha namoriscado com outras mulheres, mas eram “ásperas, tinham mau temperamento”. O namoro com Encarnação durou dois anos. Antes de casar, “foi bem vigiado”. “Vieram cá os irmãos da minha mulher, para ver as minhas condições de vida. Felizmente, viram-me sempre a trabalhar; naquele tempo vivia, mas vivia bem. Comprava bagaço de azeitona e vendia para duas fábricas”, recorda. Casou quando tinha 24 anos, em 1958. Do enlace resultaram quatro filhos. O mais velho tem 51 anos, o mais novo 38. É com orgulho que diz que a mulher não precisou de andar a ganhar ao dia fora, a cultivar campos alheios. “Ela estava sempre com os filhos”.


O desânimo nunca rondou Joaquim: “Andava sempre muito optimista”. Há quase dois anos, os ombros esmoreceram. A mulher, agora com 73 anos, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Nesse dia, a lareira estava acesa. Ele estava para sair, para ir para o armazém. Mas algo o agarrou a casa. Ela estava sentada à lareira, a aquecer-se. “E eu ao lado dela”. “Ela deu três espirros e, quando espirrou, percebi que ia cair”. Percebeu e segurou-a, “senão caía de cara, no fogo”. Com a mulher inanimada nos braços, deitou-se no chão, para a amparar. Levantou-se e foi para a rua. “Acudam, acudam!”. Foi logo transportada para os Hospitais da Universidade de Coimbra. Ficou paralisada do lado esquerdo. Está numa cadeira de rodas. Mas, “come pela mão dela e fala em juízo perfeito”. Como “cozinha. e com perfeição”, por vezes, Joaquim arrisca fazer um ensopado de borrego ou bacalhau à Gomes de Sá.


Agora, já não sente o mesmo entusiasmo para ir jogar dominó ou beber um copito, no café, com os amigos. A mulher desfia as horas num centro de dia. Por volta das 17h00, regressa a casa, onde a espera Joaquim e Raposo, a fiel companhia canina. No ano passado, a revolta entranhou-se no estado de espírito. Esteve internado no hospital, devido a uma pequena cirurgia, e pensou na vida, na dor de não ver a mulher, de não se ver a ele próprio, de não conhecer o rosto do Joaquim adolescente, adulto e entrado na velhice. E, nestas alturas, tudo vem à cabeça. “Revoltei-me muito, mas muito mesmo, por mais calma que tivesse, as lágrimas escorriam-me da cara”.


“Quem nasce cego, a sua vida é cantar. Quem viu e cegou, a sua vida é chorar”, solta em tom de desabafo. Nós acreditamos que, nos dias tristes, o Raposo lamberá as lágrimas que caiam, silenciosas, na calçada gasta. E Joaquim prosseguirá, sem perder a coragem, com o pensamento fixo num anjo da guarda: “Uma altura, cheguei a ver luz, talvez fosse o meu avô a pedir por mim. Acredito na providência”.


(publicado na revista do i, na edição Nós Desenrascados)