terça-feira, 3 de novembro de 2009

Ensaio sobre a cegueira









Um cego que durante 40 anos andou de bicicleta não é história de ficção, é vida de desenrascado. A resiliência de Joaquim Morais alimentou o olho para o negócio. Sem cão-guia e sem bengala, este homem, de 77 anos, aprendeu a ver para além dos olhos


Texto de Liliana Garcia

Fotografias de Humberto Almendra


A vida apurada por quatro sentidos. Em cada pedalada, o cheiro a pão quente namoriscava o odor a terra orvalhada. Entre as cinco e as dez da manhã, era vê-lo a andar de bicicleta, na distribuição, com um cabaz cheio de carcaças, broas, pães de segunda e de centeio. A brisa espantava as remelas de sono. O trajecto desenhado num mapa mental. Joaquim Morais, de 77 anos, nunca precisou dos olhos para saber distinguir as ruas, intuir as curvas e fazer os trocos. Uma precisa contagem do número de pedaladas fazia-o parar nos sítios certos. Durante 26 anos, foi esta a vida matinal de Joaquim, invisual desde a infância.


Um cego desenrascado e com olho para o negócio. Assim se pode resumir o perfil de Joaquim Morais. Este negociante nunca permitiu que a cegueira fosse um travão. Cedo percebeu que, “para ter futuro, tinha de encarar a vida como uma pessoa normal”. E para ele normal era ir de bicicleta vender pão entre Santar e Casal Sancho, duas aldeias do concelho de Nelas. A acompanhar o movimento das rodas, um cão. Ao ombro de Joaquim, o corvo Vicente. “O cão avisava-me quando a polícia estava por aqui, eu não podia andar de bicicleta!”, lembra. “O corvo poisava mesmo em cima de mim, imitava os cães e, quando lhe apetecia, roubava-me pão”. Os animais sempre gostaram de acompanhar Joaquim: “Não há animal nenhum que não goste de mim”.


As pombas não se intimidam perante quatro paredes e entram-lhe pelo armazém dentro. Aí, durante muitos anos, acumulou sacos e sacos de batatas, todos empilhados pelas mãos dele. Nesse depósito, a luz incide sobre um Zé Povinho intimidador: Queres fiado toma. Um calendário denuncia a simpatia pelo Sporting. Joaquim trepa para dentro do lagar de vinho e, de um canto escuro, resgata uma garrafa de tinto, de 1994. “É da idade da minha neta Susana”, contextualiza. Uma úlcera do duodeno alimenta-lhe a vontade de ser ele mesmo a fazer o vinho que consome. A prudência de quem quer saber o que lhe entra pela boca.


É no armazém, numa rua próxima de casa, que Joaquim guarda um velocípede de dois lugares. Velhinha, a bicicleta conta com 49 anos, nas mãos do negociante. Como foi comprada em segunda mão, terá, no total, 65 anos. Com esta bicicleta, Joaquim aventurou-se a ir, com um amigo, até à Figueira da Foz, onde passaram dois dias na praia. Uma viagem de 130 suados quilómetros. Com os anos, o comerciante perdeu o rasto à outra bicicleta, aquela que usava para distribuir pão e fruta. Usou-a durante 40 anos. O peso da idade minguou-lhe a agilidade e o sentido de orientação. “Naquela altura era fácil orientar-se porque não havia trânsito”.


Sem cão-guia e sem bengala, é através do ouvido que Joaquim Morais nota a presença de obstáculos. “Se bater o pé, faz eco”. “Se caísse uma folha a cem metros, eu ouvia-a”, exemplifica. Chega a observar as singularidades do feminino e do masculino: “As senhoras caminham como as perdizes, os homens como os coelhos. Ele é mais rápido a caminhar; as mulheres só caminham muito rápido quando andam com os nervos alterados”. Através do movimento, Joaquim consegue perceber se a pessoa é alta ou baixa. É no silencioso nocturno que este cego ‘vê’ melhor: “De noite, devido ao sossego, ao silêncio, o som reproduz-se em dobro”. A chuva torrencial e o vento atrapalham a leitura dos dias: “Rouba-nos um bocado a audição”.


Joaquim cresceu numa família de cinco irmãos. Os pais eram agricultores, de Casal Sancho. O pai bebia demais, a mãe tinha alegria a menos. Por sentir mais carinho em casa dos avós maternos, mudou-se para casa destes, em Santar. Aos cinco anos, cegou. “Um dia, acordei de manhã e não via. Pensei que não havia energia eléctrica e chamei a minha avó. Ela disse-me que já era de dia”. O estado de espírito escureceu: “Entrei em pânico, a chorar”.


“Nesse tempo, andava um inflamação nos olhos, chamada pisca. As pessoas até lavavam os olhos com água das rosas de japoneira, para ver se se curavam”, recorda. No entanto, o problema de Joaquim era outro. “Eu terei cegado devido a uma erva que comi, comecei a inchar e levaram-me para o hospital de Viseu, depois para o de Coimbra, e em seguida para o [Instituto de Oftalmologia] Gama Pinto. Daí, para o Hospital da Estrela”.


Joaquim adaptou-se com facilidade à nova condição. A resiliência e os colegas de infância protegiam-no. Jogava ao pião e andava com o arco e a gancheta, como a restante pequenada. Com os colegas, costumava também subir às árvores para apanhar fruta ou pinhas. Nunca caiu. E só não ia mais vezes porque a “avó chegava-lhe a roupa ao pêlo”.


Aos 19 anos, por intermédio da condessa de Santar e do governador civil de Viseu, foi para o Instituto São Manuel, no Porto. O intuito era o de aprender Braille e música. Desiludiu-se: “Meteram-me numa oficina a fazer vassouras”. Mau, mau, Maria, subiu-lhe a mostarda ao nariz, que não foi para isso que ele se mudou para o Porto. Ao fim de 12 dias, dirigiu-se ao director e perguntou-lhe quanto iria ganhar a fazer vassouras. O responsável disse-lhe que só iria ganhar algum dinheiro, ao fim de um ano, ano e meio. Joaquim não gostou da conversa. Podia lá ser?! “Havia quem estivesse a ganhar 60 ou 70 escudos” por fazer vassouras. Joaquim disse: “Ainda fujo!”. O director respondeu-lhe: “Quem foge também se agarra”. A verdade é que ninguém o agarrou.


Foi em Domingo de Ramos, três meses depois da chegada, que Joaquim fugiu do Instituto, saltando para uma tília que estava ao lado da janela do dormitório. Às costas, levava a mala com um fato e um harmónio, na mão o cabo de uma vassoura. Começou a cuspir para o chão, do alto da árvore, para perceber, através do som, a que altura estava. Saltou. Com o balanço ainda se magoou nas costas. Mas nada que travasse a vontade de regressar a Santar.


A estação de S. Bento ainda estava longe. Mas, já tinha desenhado, mentalmente, o trajecto até à estação. “Já tinha feito o percurso, acompanhado por uma rapariga que morava ali perto, para fazer os cálculos da distância”. Quando ouvi o barulho dos comboios percebeu que estava no bom caminho. “Eram quatro e tal da manhã, expliquei lá a um indivíduo que queria ir para a minha terra”. De bilhete comprado, aguardou a hora da partida. “Aguentei até às seis da manhã, a essa hora veio o ardina, comprei-lhe um jornal só para ele me dizer qual era a carruagem para a Beira Alta”. O comboio ia à pinha. Em cada paragem, Joaquim tratava de se fechar na casa de banho, não fosse a polícia aparecer. Na estação da Pampilhosa, agentes policiais ainda o procuraram, mas as artimanhas de Joaquim deram resultados. Ao chegar a Nelas, apanhou um autocarro para Santar. E não mais saiu de lá. Nessa altura, o avô já tinha morrido. “Para a minha avó, foi uma alegria eu voltar”.


Mal aprendeu o Braille, mas também não lhe fez falta. Retomou a vida de negociante. Começou por comprar sucata, papel, cortiça. Depois, alargou o comércio a produtos agrícolas. E conciliava isso com a venda de pão, ao serviço de uma padaria da zona. Nunca se deixou enganar nas contas. “Conhecia melhor o dinheiro que ele a mim”, graceja. “No tempo do escudo, arrumava as moedas ao chão e notava as diferenças entre elas através do barulho que faziam”.


Nas idas a Penalva do Castelo, a 25 quilómetros de Santar, conheceu uma vizinha de uma tia e, de repente, passou a ver com o coração. Em Encarnação apreciou a meiguice. Antes já tinha namoriscado com outras mulheres, mas eram “ásperas, tinham mau temperamento”. O namoro com Encarnação durou dois anos. Antes de casar, “foi bem vigiado”. “Vieram cá os irmãos da minha mulher, para ver as minhas condições de vida. Felizmente, viram-me sempre a trabalhar; naquele tempo vivia, mas vivia bem. Comprava bagaço de azeitona e vendia para duas fábricas”, recorda. Casou quando tinha 24 anos, em 1958. Do enlace resultaram quatro filhos. O mais velho tem 51 anos, o mais novo 38. É com orgulho que diz que a mulher não precisou de andar a ganhar ao dia fora, a cultivar campos alheios. “Ela estava sempre com os filhos”.


O desânimo nunca rondou Joaquim: “Andava sempre muito optimista”. Há quase dois anos, os ombros esmoreceram. A mulher, agora com 73 anos, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Nesse dia, a lareira estava acesa. Ele estava para sair, para ir para o armazém. Mas algo o agarrou a casa. Ela estava sentada à lareira, a aquecer-se. “E eu ao lado dela”. “Ela deu três espirros e, quando espirrou, percebi que ia cair”. Percebeu e segurou-a, “senão caía de cara, no fogo”. Com a mulher inanimada nos braços, deitou-se no chão, para a amparar. Levantou-se e foi para a rua. “Acudam, acudam!”. Foi logo transportada para os Hospitais da Universidade de Coimbra. Ficou paralisada do lado esquerdo. Está numa cadeira de rodas. Mas, “come pela mão dela e fala em juízo perfeito”. Como “cozinha. e com perfeição”, por vezes, Joaquim arrisca fazer um ensopado de borrego ou bacalhau à Gomes de Sá.


Agora, já não sente o mesmo entusiasmo para ir jogar dominó ou beber um copito, no café, com os amigos. A mulher desfia as horas num centro de dia. Por volta das 17h00, regressa a casa, onde a espera Joaquim e Raposo, a fiel companhia canina. No ano passado, a revolta entranhou-se no estado de espírito. Esteve internado no hospital, devido a uma pequena cirurgia, e pensou na vida, na dor de não ver a mulher, de não se ver a ele próprio, de não conhecer o rosto do Joaquim adolescente, adulto e entrado na velhice. E, nestas alturas, tudo vem à cabeça. “Revoltei-me muito, mas muito mesmo, por mais calma que tivesse, as lágrimas escorriam-me da cara”.


“Quem nasce cego, a sua vida é cantar. Quem viu e cegou, a sua vida é chorar”, solta em tom de desabafo. Nós acreditamos que, nos dias tristes, o Raposo lamberá as lágrimas que caiam, silenciosas, na calçada gasta. E Joaquim prosseguirá, sem perder a coragem, com o pensamento fixo num anjo da guarda: “Uma altura, cheguei a ver luz, talvez fosse o meu avô a pedir por mim. Acredito na providência”.


(publicado na revista do i, na edição Nós Desenrascados)

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