terça-feira, 10 de novembro de 2009

O guardião





Pintura de Grão Vasco à chuva, pedras tumulares a servirem de salgadeiras ou bebedouros de animais, tubos de um órgão adaptados a buzina de bicicleta. António Caetano descoseu a alfaiataria da sua vida e regressou à terra natal para estancar a destruição de um Monumento Nacional. Ao longo de 31 anos, não tem deixado que o Mosteiro de S. João de Tarouca desfaleça. Venceu a luta contra a ignorância, mas não derrotou a força do desinteresse pelo património. Se este homem não trabalhasse de forma voluntária, a igreja cisterciense estaria de portas trancadas



Texto de Liliana Garcia

Fotografias de Humberto Almendra


Há homens que revelam bravura na luta épica contra a ignorância. Em Tarouca, um homem vestiu o papel de guardião de um Monumento Nacional entregue ao Deus dará. Em 1978, António Caetano virou costas à conceituada alfaiataria Rosa & Teixeira, em Lisboa, e regressou às origens para pontear os males de que padecia o Mosteiro de S. João de Tarouca, o primeiro da Ordem de Cister em Portugal. A determinação em salvaguardar o património, levou a que o alfaiate, a título voluntário, debruasse a vida com inimigos. «Só tinha a meu favor o clero e o turismo». A mentalidade de uma população mergulhada no pragmatismo da lavoura. As mãos do povo a delapidarem o espólio, sem acto de contrição. Deus a benzer-se perante o trato dado às peças de arte.


«Fui ameaçado de morte». A intimação surgiu pela voz de um antigo presidente da junta de S. João de Tarouca, já falecido. Numa noite em que a embriaguez elevou o tom da ameaça, o autarca, de arma na mão, disse a Caetano: «Ou largas isto, ou tens os dias contados». O alfaiate contou até três e calou-se. Não fosse acirrar a ira do outro. Caetano alertou o Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) para o facto da casa do edil estar a infringir a lei, uma vez que a construção está a menos de 50 metros dos muros dos dormitórios conventuais. A câmara municipal de Tarouca tinha aprovado a obra. O tempo veio dar razão a António Caetano que, há dois anos, viu o Estado comprar a casa aos proprietários, com a intenção de demoli-la.


Mas a construção demasiada rente ao que resta do mosteiro do século XII, na encosta de S. Leomil, foi o menor dos problemas. Há 31 anos, na Igreja de S. João de Tarouca chovia como na rua. Mudar as telhas em pleno Inverno não lembraria nem ao diabo. Mas lembrou a alguém. A população chegava a participar na eucaristia, de guarda-chuva aberto. Sem dó nem piedade, a chuva fustigou as obras de arte, incluindo pinturas do mestre da pintura quinhentista Grão Vasco e do seu seguidor Gaspar Vaz. «O quadro S. Pedro, de Grão Vasco, saiu daqui, todo molhado, para ser restaurado» no Instituto de José de Figueiredo. Obra essa que, em 2002, integraria a exposição dedicada a Grão Vasco, em Salamanca - Capital Europeia da Cultura.


Junto ao altar, há duas molduras órfãs de imagem. As pinturas estavam tão maltratadas que houve quem as deitasse fora. Fruto da humidade, várias esculturas em terracota desfizeram-se; azulejos descolaram-se das paredes. Chocado, Caetano escreveu cartas ao Primeiro-Ministro, à Assembleia da República, à secretaria de Estado da Cultura. Ganhou a atenção do governo socialista de António Guterres.


«Para conseguir que o Estado olhasse por isto, foi preciso envergonhá-los». Nessa altura, António Caetano colocou paus a servirem de apoio ao órgão e um cartaz com uma frase de alerta: Perigo de cair. O órgão ibérico de tubos, situado na parte superior direita do Coro dos Monges e datado de 1766, não escapou aos braços esticados da cobiça. Segundo as contas do voluntário vigilante, foram subtraídos 68 tubos. «Chegavam a adaptar os tubos para as buzinas das bicicletas». No órgão, impõe-se a figura de um homem que marcava o compasso da música movimentando o braço e a boca. Mas não há som, porque tarda a vir a comparticipação financeira do Estado, para concluir as obras de restauro.


A extinção das ordens religiosas, em 1834, transformou o templo em igreja paroquial. Um manto barroco já tinha coberto a primitiva austeridade cisterciense. Os azulejos aninhados nas paredes começaram a criar ânsias nos dedinhos de um camponês que se lembrou de enriquecer a cozinha de casa com aqueles elementos decorativos do século XVII. Quando António Caetano começou a ser uma voz de reprovação, o agricultor quis livrar-se de chatices. Mandou picar as paredes da cozinha e atirou os azulejos para o rio Varosa.


«Com a ignorância, e por razões políticas, destruíram as coisas», lamenta o vigilante, de 72 anos. «No pós-25 de Abril, sanearam o pároco e diziam que, sem padre, mais valia destruir a igreja e torná-la num palheiro». Não transformaram o espaço religioso em depósito de palha, mas andou lá perto. O exterior da igreja chegou a ser utilizado como eira para malhar o centeio.


O túmulo gótico de D. Pedro Afonso, filho bastardo de D. Dinis, permanece na igreja. Mas, o túmulo da mulher de D. Pedro Afonso, que agora está no Museu de Lamego, chegou a ser usado como recipiente para fazer vinho. Outros túmulos aproximaram-se, à força, das rotinas daquelas gentes e foram usados como salgadeiras ou bebedouros para os animais. A capela de Santa Umbelina, que está ao abandono, foi usada como curral. Tal como a capela de Santo António foi adega de um – presume-se - abençoado vinho. «É impossível, no século XX, ainda ter existido gente com aquela mentalidade», indigna-se António Caetano. Mas no século XXI, só se observa uma mudança de forma. Agora não pulula a ignorância, mas pavoneia-se o desinteresse. Como diz o vigilante voluntário do mosteiro, o poder local não se entusiasma com a cultura porque «não dá votos».


Tarouca, no distrito de Viseu, é um concelho rural, com abundante emigração e escassa indústria. A empresa que mais andará na boca das pessoas é a Murganheira, produtora de espumante. Para além da riqueza do património histórico-cultural do concelho, não se vislumbra mais nenhuma razão de maior que tenha justificado, em 2004, a elevação de Tarouca a cidade. Seria de esperar que tivesse ocorrido também uma elevação da sensibilidade para as questões culturais.


Mas não. No sítio electrónico do IPPAR, é lembrado sim senhor que, «em 1996, a intervenção no Mosteiro de Tarouca, reconhecidamente um dos mais significativos monumentos da arquitectura cisterciense em Portugal, foi assumida como prioridade absoluta». E o que se faz com «uma prioridade absoluta»? Fazem-se obras de conservação e restauro, não se renovam os contratos dos três funcionários e tranca-se o monumento. Sem funcionários, a igreja passou a servir apenas para o serviço religioso. O que vale ao turismo é que Caetano tem autorização do pároco para abrir «a prioridade absoluta».


O guardião sabe que a diocese tem riqueza patrimonial, mas poucos euros nos bolsos. Por isso, percorre todos os dias 20 quilómetros de carro, para trabalhar de forma voluntária. O IPPAR conta com a generosidade dele, como se constata no site: «Quem estiver interessado em visitas guiadas deve tratar com António Vieira Caetano, no local ou através do número telefónico: +351 254 678 766».


Na solidão, abraçada pela gravação de cantos gregorianos, António Caetano continua a encantar-se com a grandiosidade das peças de arte e a alimentar a paixão pela História. No dia em que as pernas do vigilante não puderem acompanhar a vontade, acabam-se as portas abertas, as visitas guiadas e o deslumbre nos olhos dos visitantes. E o vale do rio Varosa vai ajoelhar-se de vergonha. «Sou útil ao país, embora os governantes não o reconheçam», solta. Alguém tem dúvidas?


(publicado na revista do i, na edição Nós Bravos)


Nenhum comentário:

Postar um comentário