terça-feira, 10 de novembro de 2009

Primos direitos






Pastéis de Tentúgal e Pastéis de Vouzela são parecidos na aparência, distintos no recheio. Quando se come apenas com os olhos, é frequente confundir os dois. Quem conhece o sabor e os bastidores da confecção nunca mais esquece as diferenças. Em Tentúgal, a tradição ainda é o que era. Com massa esticada sobre estrados com lençóis e pinceladas de pena de galinha


Texto de Liliana Garcia
Fotografias de Humberto Almendra

Uma roda de madeira a quebrar o recolhimento intramuros. A roda como símbolo pragmático da ligação do Convento de Nossa Senhora do Carmo com o exterior. Era naquele cilindro oco que as gentes da região de Tentúgal depositavam donativos ou recém-nascidos cujo destino seria o desamparo. As irmãs religiosas a estenderem os braços num movimento perpétuo. Através daquela roda giratória saíam mezinhas da botica e pastéis folhados da cozinha, para curar maleitas e alimentar convalescentes. Foi através dessa mesma roda que as freiras, da Ordem das Carmelitas Calçadas, colocaram Tentúgal no mapa da gula.

Uma voz aponta para a roda, com a solenidade de quem tem gosto em narrar a História. «Por ali tudo entrava e tudo saía», afiança José Craveiro, contador de histórias e um dos dinamizadores da Confraria da Doçaria Conventual de Tentúgal. Mais do que de vocação, «a História da Igreja é de humanidade». José Craveiro, conhecedor da história daquela vila do Baixo Mondego, sublinha que «90 por cento das irmãs» seguiam a vida religiosa não por chamamento divino, mas porque um convento representava uma «casa de refúgio», onde comida e dormida eram uma certeza.

O Convento de Nossa Senhora do Carmo, criado no século XVI pela mão de D. Francisco de Melo, Conde de Tentúgal, nasceu como amparo para órfãs e filhas de fidalgos que não tinham possibilidades de as casarem. «Muitas vinham para aqui já grávidas porque senão morriam de fome», aviva Craveiro.

A namorada do poeta António Nobre foi uma das jovens colocadas pela família no convento de Tentúgal. O autor da obra “Só” (1892) empenhou-se em quebrar as barreiras físicas que o separavam da amada. Mas o máximo que conseguia, nas idas a Tentúgal, foi adoçar a boca e ganhar inspiração poética: «Tentúgal, toda a rir de casas brancas! / A boa aldeia! Venho cá todos os meses/ e contrariado vou de todas essas vezes. / Venho ao convento visitar a linda freira, / Nunca lhe falo: talvez hoje a vez primeira… / Vou lá comprar um pastelinho, que eu bem sei/ que ele trará dentro um bilhete, isto sonhei: / Assim o pastelinho, ó ventura sonhada! / Tem de recheio o coração da minha amada. / Abro o envelope ideal. Vamos a ver… - Traz? – Não! / Regresso a Coimbra só com meu coração».

José Craveiro conta que da boca da última prioresa do convento saiu um vaticínio: «Ai de Tentúgal e sete léguas em redor quando esta casa fechar a porta!». O encerramento ocorreu em 1898. Com a extinção das ordens religiosas, as freiras ficaram entregues à miséria. Era a vez da comunidade cuidar das irmãs. A mão do povo começou a dar com uma mão, puxando o receituário conventual com a outra.

A proximidade com as últimas criadas do convento fez com que Maria da Conceição Faria se inteirasse do guloso segredo. Em 1890, os pastéis folhados começaram a ser feitos e vendidos na hospedaria da família Faria. A receita passou de mãe para filha e, a partir do início dos anos 20 do século XX, Branca Faria Delgado impulsionou a divulgação dos Pastéis de Tentúgal. Professores e alunos da Universidade de Coimbra começaram a deslocar-se até à vila para que as papilas gustativas recebessem doces lições.

Na hora de meter as mãos na massa, as pessoas sabedoras da receita dos pastéis cobriam-se de sigilos. As janelas eram tapadas com mantas porque o segredo era a alma do negócio. Mas não haja ilusões. Conhecer a receita dos pastéis de Tentúgal significa ter uma mão cheia de nada. Ou, como diria José Craveiro, «a receita dos pastéis será a única do mundo que não se pode escrever». A massa folhada é composta apenas por água e farinha. O recheio resume-se a uma mistura de gema de ovo, açúcar, água e canela. Agora tentem fazer em casa. Nós asseguramos que o resultado será desastroso. Não existe receita que ensine a técnica apurada em gestos femininos.

Olga Cavaleiro, responsável pela Confraria da Doçaria Conventual de Tentúgal, abre-nos as portas dos bastidores da sua pastelaria recheada de doces tentações. Desde que criou a confraria, há dois anos, esta empresária, filha de uma pasteleira, empenha-se em divulgar os pastéis e toda a cultura ligada ao fabrico. Para isso, entre outras iniciativas, foram criadas as rotas da doçaria conventual e do património. O objectivo é criar um «turismo de proximidade». «As pessoas que entram aqui não são só visitantes, lido com elas de forma a serem potenciais defensores do património», sublinha Olga. E isso significa dar conhecimentos aos consumidores para que percebam quando estão perante um pastel de má qualidade: «Se precisar de exercer pressão no maxilar é porque o pastel não foi bem feito; se este se desfizer na boca é porque estava bem feito».

Colocamos as toucas na cabeça e seguimos Olga até à casa da massa. Aí, em extensos estrados cobertos por lençóis brancos, uma pasteleira, vestida de branco e sem sapatos, vai aos poucos esticando um círculo de massa. Estica, deixa repousar, estica, deixa repousar. «Só para fazer a massa, uma mulher tem de aprender cerca de um ano, é preciso muito treino», explica Olga. Há que praticar muito, até conseguir fazer massa folhada com uma espessura de 0,05 milímetros. Depois de esticada, aguarda 10, 15 minutos, até ser retirada aos pedaços com uma faca. O controlo da humidade é uma constante.

No espaço da cozinha, alinham-se vários recipientes com doce de ovos. Numa banca, uma pasteleira estende uma folha de massa folhada, coloca pedaços da mesma massa no centro e junta-lhe o doce de ovos. O pastel é enrolado e as pontas dobradas. Com o auxílio de uma pena de galinha, soltam-se uns pingos de manteiga. «A pena de galinha é importante porque permite que a gordura que escorre não seja exagerada». Na pastelaria de Olga Cavaleiro, por dia, chegam a ser gastos 40 quilos de farinha, 72 quilos de açúcar e mais de mil ovos. Em apenas um dia, da cozinha saem entre dois mil a quatro mil pastéis.

Para além do pastel em formato de palito, também se faz a meia-lua, que era consideradas a excelência da doçaria de Tentúgal. Enquanto o pastel representava o alimento dos pobres; a meia-lua, com doce de ovos com amêndoa, era oferecida em ocasiões especiais.

O processo de qualificação dos Pastéis de Tentúgal, entregue no Ministério da Agricultura, no ano passado, implicou a criação de um caderno de especificações onde se normaliza a confecção e embalagem dos doces. Dos nove pasteleiros a fazer pastéis, seis deles decidiram esquecer as rivalidades e integraram o processo de qualificação. «As coisas mudaram na apresentação final do pastel, aumentou o brio e orgulho no pastel», sublinha Olga Cavaleiro.

Nós quisemos saber se existe uma doce rivalidade entre os Pastéis de Tentúgal e os Pastéis de Vouzela, tantas vezes confundidos. Quando se fala no doce de Vouzela e das parecenças físicas com o de Tentúgal, Olga Cavaleiro aclara que de gémeos pouco têm. Quanto muito serão primos em primeiro grau. Aos olhos mais desatentos o aspecto dos dois doces conventuais parece semelhante. Ambos de massa folhada, enrolada. Mas de recheio e modos de produção distintos.

Olga Cavaleiro afirma que, segundo os relatos históricos, «acredita-se que as freiras do convento de Tentúgal, ao regressarem a casa da família, terão levado com elas o segredo». Algumas delas seriam da zona de Vouzela, em Viseu, e teriam iniciado aí a produção de pastéis. Tentámos conversar com a doceira que há mais anos faz Pastéis de Vouzela, com o intuito de conhecer a história do bolo. Mas a única coisa que conseguimos ouvir foi: «Estou farta de falar com jornalistas! Por isso, não falo mais de pastéis». Procuramos quem queira partilhar o pouco que saiba sobre a história do pastel. Os pasteleiros Vítor e Miguel Correia referem, sem certezas, que a receita terá vindo do Mosteiro de Santa Clara do Porto, com o regresso de religiosas às origens, na zona de Lafões.

A escala do negócio dos pastéis de Tentúgal e de Vouzela é incomparável. Enquanto no Baixo Mondego, os pastéis dão emprego directo a 150 pessoas, em Vouzela, existem apenas três produtores. Outra das grandes diferenças entre os dois pastéis é que, enquanto em Tentúgal, a confecção está, em exclusivo, entregue às mãos femininas, em Vouzela, são os homens a dominar o fabrico.

Após a morte do pai, os irmãos Vítor Correia, de 38 anos, e Miguel Correia, de 28, decidiram não pôr ponto final ao negócio familiar. Se o pai fazia Pastéis de Vouzela, eles haviam de dar continuidade à guloseima. Tornaram-se sócios e tiraram o pastel do domínio caseiro. Na zona industrial da vila, dedicam-se, em exclusivo, à confecção dos pastéis conventuais. Nos meses de Inverno, costumam produzir, por dia, entre 30 e 40 dúzias de doces. No Verão, os valores sobem às 80 ou 90 dúzias.

Vítor, habituado a ajudar o pai desde os 16 anos, confessa que «a primeira vez foi complicado». «Ver é fácil, mas até ganhar acerto e ritmo só ao fim de meses de trabalho». Se aprender a esticar a massa demora meses, saber enrolar um pastel é tarefa para levar algumas semanas. Em Vouzela, a massa folhada é feita em moldes modernos, com a massa a ser esticada em telas distribuídas em prateleiras de metal. O recheio é mais líquido que o do pastel de Tentúgal e em vez de pena de galinha é utilizado um pincel de silicone.

«O pastel leva muitas voltas, não é só chegar aqui e esticar. São muitas horas de trabalho. Isto é um serviço de que se tem de gostar. Eu gosto», desprende Vítor. Gosta do trabalho e da degustação. Ou não fosse um guloso assumido. Quem o critica?

(publicado na revista do i, na edição Nós Gulosos)

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